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montesclaros.diariomineiro.net - Ano 26 - quinta-feira, 22 de maio de 2025
De: Reprter 98 FM Data: 22/4/2005 11:25
Cidade: Santiago do Chile - Amrica do Sul

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(O reprter 98 – um deles – est no Chile. Foi de frias. Prometeu enviar
“ anotaes de viagem”, sem qualquer compromisso ou data. Tentar.
Este o primeiro despacho que envia. O reprter diz que no sabe quando viro os outros, porque – pensa ele – chegou a hora de conhecer mais e contar menos, e no pretende estragar sua peregrinao com compromissos. “Quanto mais menos, nenhum” – repete.
De toda forma, pede para avisar: mais do que ao Chile, mais do que aos Andes ou ao Pacfico, foi, viajou, a Pablo Neruda, o poeta de olhos semicerrados de tartaruga que muito o ajudou aos l8 anos. Pretende pagar “uma conta” e acha que far isto, visitando como um peregrino, cuidadoso, as 3 casas do poeta – La Chascona, La Sebastiana e Isla Negra. Cr, acredita mesmo, que o poeta esteja nelas, ou impregnado nelas, e vai ao seu encontro. Este o primeiro dos depoimento que prometeu mandar )

“O vo de 3h20m, desde So Paulo, no desembarca exatamente sobre “Santiago de La Nueva Extremadura”, uma cidade de quase 500 anos e 6 milhes de habitantes, que abriga 40% da populaa do Chile. A esplndida viso da metrpole, espremida entre duas cordilheiras, no concorre com a viso dos Andes e se desfaz.

“Los Andes”, como dizem os simpticos nativos, superam toda descrio dos bancos escolares quando emergem na proa do avio, retorcidos e soberbos, espetando as nuvens brancas com suas geleiras brancas(foto). A diferena que ali so reais, existem, amedrontam. Encerram a capital num desfiladeiro coberto de fumaa neste incio de Outono. De um lado, os Andres, com seus cumes de 7, 8 mil metros ou mais; do outro lado, a cordilheira da Costa e, depois, o Pacfico, que traz o distante Oriente para perto, como nunca antes fora possvel.

Para trs, em poucos minutos, ficaram os caracois do rio Paran, os campos riograndenses, as estepes argentinas, Crdoba, Tucumam, o imponente Acncaqua e uma histria. No muito distante de onde voamos, um avio militar uruguaio caiu com um time de futebol e, nas geleiras, quem no morreu durante semanas sobreviveu comendo a carne gelada do outro que morreu ao lado. A histria virou um filme com muitos nomes e o que me lembro este – “Sobreviventes dos Andes”, ou algo prximo. A lembrana um calafrio, pois cair de avio nos Andes morrer 3 vezes - na queda, na altura que no recua e nas geleiras eternas.

Por fim, quando o Boeing com velocidade cruzeiro de 835/km/h e uma temperatura externa de 70 graus negativos inclina, e vaza as nuvens, descobrindo pela frente os Andes finais, certamente a vastido da cidade no compete, no concorre com os picos que at santa prpria tm – Santa Teresa de Los Andes.

A cidade corteja a montanha e, as duas, adulam o centro da terra, ali sempre imprevisivelmente revolto, medonho, capaz de acordar, por qualquer motivo, insolente, para depois adormecer por longos perodos. Como agora – quando os terrveis terremotos esto a 20 anos de ns, eles que costumam vir regularmente sempre a cada 15 anos. Assim distantes, ficam prximos, e chamam-se; a cada noite concentram energias para vir acima. So esperados para esta tarde, ou amanh; talvez na semana que vem, ou na outra, na seguinte. O certo que viro. Viro, porque tem um encontro eterno com o Chile, e todos o esperam, como num ritual; como esperam os chilenos, a cada primavera, que o gelo da montanha se desfaa em gua e que a gua transborde este magro e saltitante rio Mapocho, ora excessivamente diminudo no caixo de concreto que lhe custodia. (O longo olhar e o abrao do Chile ao seu prximo terremoto, os prximos, contaremos adiante).

Do avio que taxia, a cordilheira fica para trs e na memria; a bruma a reduz a uma tnue, delgada e alta silhueta. Santiago exibe seus lamos, as alamedas vindas da Frana, onde Bonaparte fazia desfilar as tropas sempre na sombra. A cidade vasta, bela, de uma terra branca, porosa, onde talvez comece, ou talvez termine, o gigantesco aluvio de areia que vai, ou vem, do deserto de Atacama, ao norte, o mais intratvel do mundo. Os prdios so baixos, na maioria, prudentemente postos asssim para que se contenham nos limites do razovel quando tiverem que tremer, e at cair, por um ou outro terremoto. As avenidas so longas, h verde pelos caminhos, e alegria, e o outono j derruba as folhas sensveis. Uma s avenida, a do Libertador, nasce no p dos Andes, atravessa Santiago inteira e vai at o porto de Valparaso, conhecido como "porto do fim do mundo", cento e tantos quilmetros depois.

Estamos no Chile e queremos ir ao poeta. Por hoje, a 3 quarteires deste simptico Hotel Galerias, iremos s ao Palcio de La Moneda, pela calle Moneda, no centro histrico, bem perto da Plaza de Armas, o ponto zero da capital e da prxima explorao. Veremos, com os olhos de 11 de setembro de 1973, as marcas da artilharia area sobre o frontispcio deste conjunto neo-clssico (foto), atarracado, despojado at, antiga casa de fundio da moeda colonial, onde o presidente Allende, cercado e exausto, sob a mira dos “pilotos traidores” da Fora Area do Chile, desfechou contra o peito os tiros da metralhadora que lhe fora presenteada por Fidel Castro para encaminhar a revoluo socialista. uma verso. Ele teria sido morto, outra. Para uma s tarde, ser demasiado desfazer o mistrio. Quem vai a procura de versos talvez deva evitar indagaes.

Impossvel. O poeta Neruda, 12 dias depois deste primeiro 11 de setembro das Amricas, tambem foi alcanado pelos tiros, embora no estivesse no La Moneda. Estava do outro lado da cidade, no final da BellaVista. O desgosto o matou. Morreu porque nele morreu a esperana, e o cncer que partiu da prostata achou no desencanto daqueles horas um aliado devastador. Amanh, quando chegarmos sua casa em Santiago, La Chascona, onde comea o Cerro San Cristobal, com o velrio ainda posto na sala, ser possvel perguntar por aqueles dias. Amanh. Talvez amanh.

Hoje, na praa defronte ao palcio, no seu pedestral de concreto, Salvador Allende preside a tarde, e os Carabinri do Chile, orgulho da populao por se sentir segura nas ruas, muito segura, os carabinri permitem educadamente que qualquer um entre e saia da sede do governo, onde agora despacha o presidente Ricardo Lagos. Permitem -. ainda que por l alguem tardiamente procure o visionrio que recolheu seus culos na sala incendiada do primeiro 11 de setembro das Amricas, levantou-se e foi morar direita dos jardins, com os olhos de cimento voltados para o Chile. E sobre uma frase: “Mucho mas temprano que tarde, de nuevo se abriran las grandes alamedas por donde pase el hombre libre para construir uma sociedad mejor”.

(Nos prximos dias, La Chascona, a casa em Santiago de Pablo Neruda; onde viveu, onde no morreu, e onde foi velado, dias depois do grande saque que se seguiu ao golpe de 11 de setembro de 1973, no Chile)


De: Reprter 98 - Segundo despacho Data: 16/4/2005 23:45
Cidade: Santiago do Chile

(Nas linhas abaixo, o reprter 98 – um deles, envia do Chile o segundo despacho da viagem que faz ao poeta Pablo Neruda. O primeiro, de semana ada, est recolocado imediatamente abaixo, para que as duas narraes obtenham unidade e sentido. Viro outros telegramas noticiosos, como se dizia nos tempos de Neruda, ou e-mail, como acgora chamam esta milagrosa forma de comunicao instantnea. Narraro a visita La Sebastiana, em Valparaso, e Ilha Negra, onde sob o olhar do poeta o Pacfico o mais vasto e misterioso dos oceanos. E o mais rude. )
As fotos acima mostram a intimidade do primeiro ncleo da casa La Chascona, de Pablo Neruda, com o ptio interno; a construo azul, ao fundo, em forma de farol martimo, a lareira e o quarto do poeta; embaixo, a foto roubada de sua cama.

“Por estes dias, contemplando o Salvador Allende Gossens que foi morto no La Moneda, ergueu-se e vive nesta esttua de granito, de onde de solenes culos v o Chile e obrigado a ver tambm, no prdio escuro adiante, os sinais dos balaos que o mataram, interrompemos as primeiras “anotaes de viagem” a Pablo Neruda.

Hoje, iremos La chascona, a casa em Santiago de Neruda, que tendo vivido pelo mundo e amado as mulheres, muito sensual que foi, a trs delas entregou sua alma, em trs casas essenciais. ( La Chascona, diga-se logo, deu sua morte).

Em 1939, numa praia desabitada que lhe recordava o spero e amado Puerto Saavedra da infncia, na costa escancaradamente aberta para o Pacfico e para o Oriente, o poeta demarcou a residncia ocenica, a que chamou de Isla Negra, sem ser ilha e sem ser negra.

Em 1953, com o prmio Stalin da Paz construiu La Chascona. Estava ainda casado com a segunda mulher, uma argentina vinte anos mais velha, e amava outra em segredo, uma cantora chilena que conheceu no Mxico, a “descabelada”, “chascona”, nome que deu casa de Santiago .

Por fim, em 1959, no porto de Valparaso, imaginou e finalizou a construo de uma chal-mirante, que olha para o mar e que chamou de La Sebastiana, em honra do antigo proprietrio de quem ficou amigo.

As 3 casas, por diferentes que possam ser vistas, mostradas e examinadas, so uma, uniformemente iguais no que nutre o poeta – o olhar.

La Chascona olha para os Andes, do alpendre; nas outras duas, o mar que o poeta procura trazer para a sala, para a mesa, para os quartos, para a cama. Ou simplesmente a cama que ele deseja pr no mar.

Assim so as 3 casas e devemos entrar j na primeira, La Chascona.

APETITE

Como faremos isto em tempos diversos, que de agora devem recuar aos dias sangrentos de setembro de 1973, bom descrever logo, rapidamente, o Chile atual, que ontem nos acolheu.

Na geografia, a tripa marinha de 4 mil quilmetros de cumprimento e 180 de largura mdia, espremida entre os Andes inspitos e o Pacfico, que nos seus confins enlaa o Oriente.

So 15 milhes de habitantes, remanescentes ndios, poucos, os mapuche, e a mistura de ndios com os colonizadores espanhis; 40% dos chilenos esto em Santiago e os demais repartem-se pelo Norte Grande com o deserto de Atacama e pelas regies frias do sul, at o polo austral.

Regio farta de vulces, terremotos e tsunamis, o Chile viveu uma das piores ditaduras do sculo ado. Hoje, recuperado para a democracia, apresenta a economia mais desemperrada entre os 11 ou 12 vizinhos latinos (a maioria de lngua espanhola e um s – o Brasil - que fala portugus), propiciando um visvel salto na qualidade de vida da populao.

As ruas da vasta Santiago so seguras, limpas e belas; por elas, a qualquer hora do dia e da noite, os patriotas e visitantes andam em perfeita segurana; a polcia protege o cidado e o cidado confia na polcia;, os carabinri do Chile, sem dvida, so um expressivo e visvel smbolo do orgulho naciona, preciso repetirl.

Para quem chega do Brasil, para quem vem de Montes Claros ou de Belo Horizonte, onde sair noite, e at de dia, em determinados lugares, virou uma aventura e uma temeridade, poder circular por Santiago – de 6 milhes de habitantes -, sem puxar o medo pela mo, gratssima alegria.

Outra perceber, rapidamente, que o Estado aqui existe para resolver o problema de todos e no para criar problemas para todos.

ntido, transparente, o esforo do Estado pelo bem geral, sem criar embaraos, exigncias, tropeos, armadilhas, leis e artimanhas que asfixiam, infernizam, humilham, empobrecem e aviltam a populao, como no Brasil.

Populao moda imemorialmente pelo insacivel apetite do Estado, que nasceu para lhe servir, mas que a exaure torturadamente at o limite da indigncia e do esgotamento, seja de que governo for.

Os juros bancrios no Chile so de 2 por cento ao ano, contra cento e tantos no Brasil, e um apartamento pequeno, no centro de Santiago, pode ser comprado por 20 mil dlares, com prazo de dezenas de anos.

A economia funciona, os nveis de emprego so bons, os meninos vo para a escola de gravata e, as meninas, com suas saias quadriculadas e golas de marinheiro. A escola privada, inclusive a universidade e o ensino primrio, mas ningum que no tenha dinheiro fica de fora, pois h um programa pblico que assegura a todos o o ao conhecimento.

MURMRIOS

por este Chile de economia civilizada, quase do primeiro mundo, que caminhamos, nesta manh, em direo ao bairro de Bella Vista, no sop de Cerro San Cristobal. O caminho curto, vamos a p desde a Plaza de Armas, mas, quando l chegarmos, em poucos minutos, ser 23 ou 24 de setembro de 1973, dias depois do golpe do general Pinochet, que matou Allende, o homem de granito e de culos l de cima.

Na casa, percebam, h murmrios, e velam um corpo. No houve terremoto nos ltimos dias, mas o estado da casa de destruio semelhante.

A fora area do Chile bombardeou o palcio; metralharam os prdios vizinhos e escorraaram a democracia.

Depois, saram atrs dos que no se renderiam.

O poeta Pablo Neruda um deles, longamente indisposto com os tiranos. Est doente. O golpe lhe suprime as foras, mas ele escreve as linhas finais, e dolorosas, do “Confesso que Vivi”. O general Prates, seu amigo, esperado com uma coluna de tanques que deve marchar pelo sul e que nunca vai chegar.

Neruda morre no hospital, longe das trs amadas casas. Havia comeado a morrer 12 dias atrs – num primeiro 11 de setembro das Amricas - quando a rosa rubra que Allende conduziu ao La Moneda converteu-se no cogumelo de fumaa da primeira bomba despejada pelo primeiro avio bombardeiro.

A traio dos “pilotos chiilenos” o matou, mais e definitivamente do que o cncer de prstata, que quem sabe? poderia ainda entreter-se com seus versos e deter-se.

Cerrada a vida do poeta , multiplicado o dio que lhe tinham, saram a saquear suas casas – primeiro, La Chascona, depois La Sebastiana, a que iremos visitar amanh em Valparaso.

Rasgaram livros, rasgaram fotos, destruram recordaes e histrias, destruram portas e janelas, estilhaaram os vidros.

Procuravam armas, encontraram poesia, e um caudal de guas desviaram do Cerro So Cristobal para que as trs diferentes partes de La Chascona fossem destrudas pela pequena gua, a me dos rocios, to do agrado e da intimidade de Neruda.

Era o terror do estado, o pior deles, descendo em cachoeiras de vingana na sua prpria casa.

Quando chegaram com o corpo do poeta para ser velado, e que agora est no segundo andar, deliberaram os amigos no suavizar qualquer trao do dio que o precedeu, mantendo intacto o rebuo de selvageria.

Que o dio, tambm ele, velasse o poeta, e por castigo ouvisse sua rapsdia final:

“E a minha voz nascer de novo,
talvez noutro tempo sem dores,
sem os fios impuros que emendaram
negras vegetaes ao meu canto,
e nas alturas arder de novo
o meu corao ardente e estrelado”

O estdio nacional do Chile – onde o Brasil foi bi-campeo mundial – empapua-se com milhares de presos, quando o corpo de Neruda deixa a La Chascona para a sua no definitiva sepultura. Eu vejo a cena.

Os amigos esto encarcerados, so caados pelas ruas, mortos e torturados. Os que restaram, que pularam sobre os sabres, esto aqui. Eu os ouo gritar, quando am com o morto:

“Pablo Neruda ? - Presente, agora e sempre!
Povo chileno ? - Presente, agora e sempre!
Salvador Allende ? - Presente, agora e sempre!

A VIDA DOLOROSA


Daqueles dias, que foram anos, cessaram as guas desviadas do alto morro. A irao e o clamor do mundo tangeram as instncias do horror e La Chascona se transformou num centro de peregrinao, tal como a encontramos agora, de volta a este Outono de 2005.

O poeta regressou por inteiro a esta casa, partida em trs, como sempre partir suas outras casas em trs ambientes distintos. Uma parte, a mais alta, o “crebro”; a segunda pertence ao “corao”, ao amor, sempre o amor, e a mais baixa tem a serventia que o estmago tem de sustentar as demais.

A via dolorosa que na primavera de 1973 viu ar, envergonhada, o corpo de um dos maiores poetas de todos os tempos, dobrada por uma ditadura cruel, tambm de volta uma rua meiga, entortada, que vai vai dar noutra rua, tambm torta, tambm meiga e tambm gentil.

La Chascona levantou-se da humilhao, recuperou-se.

No importa, ou muito importa, que numa vitrine junto a livros preciosos, de primeiras edies, guarde e tambm exiba o pungente apelo de Matilde Urrutia, com sua clara letra, para que cessasse o desvario, para que do extermnio os verdugos pouem os preciosos originais dos “Versos Del Capitan”, que a ela, e s a ela, pertencem. A cano do amor prudente que nasceu na ilha de Capri.

A letra vigorosa da mulher forte, sobrevivente de terremotos especialmente devastadores em sua Chilln natal, foi suficiente para estancar a fria, submeter a arrogncia e, suprema vitria, livrar os versos do estrangulamento.

La Chascona assim vive.

Na porta da rua, rente ao eio, no primeiro nvel, sempre em forma de navio e com detalhes outros de embarcaes, est a sala de jantar, onde Neruda recebia os amigos. Na mesa, h um lugar s dele – onde se senta, e comanda a barcarola gastronmica. Dom Pablo, o gordo “capito seco”, ancorado na Terra.

Mais adiante, h um armrio. Por este armrio, por uma porta falsa de guarda- roupa, h uma escada oculta para o segundo andar. Nesse andar est o quarto que depois da morte de Neruda ocupou Matilde, a terceira e definitiva paixo. E onde Matilde morreu.

Alm do primeiro lance dos jardins ascendentes, esto a lareira e o quarto do casal, com vista para os Andes, em forma de farol martimo. Na cama , triunfa o leo de pelcia que o poeta ganhou de Matilde ao receber o Nobel de literatura.

O quadro na sala, perto de um Panceti, de Diego Rivera e pe no rosto de Matilde a sua vida dupla. Neruda ainda estava com a segunda esposa e j namorava Matilde. O muralista mexicano, cmplice, pintou o perfil de Neruda enlaado pelos cabelos da “chascona”.

Por um seguinte caminho entre os jardins, a partir dos aposentos do amor, vamos ladeira acima ao “crebro” da casa. o local de trabalho, onde escrevia o poeta, numa mesa de madeira devolvida pelo mar. Nesta caixa de vidro, silenciosos falam os seus culos de grossas armaes. Mais adiante, sem qualquer alarme, esto o pergaminho do Prmio Nobel de 1971 e a medalha de ouro.

Na frente, abrindo caminho para os Andes, fica a sala de leitura do escritrio, com o quadro de uma mulher. Neruda ali parava para ler, de costas para a cordilheira. Dizia que a mulher do quadro sua frente era to feia que o obrigava a voltar rapidamente para os livros, se levantasse os olhos.

A visita La Chascona – hoje museu – no demorada, porque h muita gente para entrar. As fotos internas so proibidas, mas o melhor – as vistas que o poeta via e v – estas so livres e por elas volta Pablo Neruda. Com sua ampla calva. Com a voz quase montona, fanhosa, anasalada, do sul do chile. Com o sorriso de criana no rosto largo. Com o inseparvel bon de jquei. Recitando:

“De outro. Ser de outro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan coerto el amor, y es tan largo el olvido”


Vem com ele o menino que fez notveis versos em Teumuco, como estes. Alguns como se recebesse um ditado, antes dos 15 anos.

O menino o segura pela mo e dizem, e concordam, juntos: “O homem que no brinca perdeu para sempre a criana que vivia nele e que lhe far muita falta”.

A chamar o poeta, pelas noites, ficou um jasmineiro, que deita poesia por sua vez sobre o telhado de telhas comuns, dessas feitas nas coxas.

Um jasmineiro como os jasmineiros de qualquer parte, em Belo Horizonte ou Montes Claros. Com a graa e o estrito perfume que Neruda foi buscar quando procurou as melhores palavras para celebrar Garcia Lorca, o poeta assassinado na guerra civil da Espanha.

Na noite em que os dois deveriam ir ao circo Price de Madri, Lorca no veio. Ao invs de circo, foi a um peloto de fuzilamento.

(Amanh, visitaremos La Sebastiana, em Valparaso, terra de rudes marinheiros e por muitos anos o mais remoto porto do mundo. O porto do fim do mundo. A nos esperar, na casa do poeta, um terremoto). “



De: Reprter 98 - Penltimo despacho Data: 9/4/2005 10:07
Cidade: Valparaso Pas: Chile

(Este o terceiro despacho, ou “anotaes de viagem”, que o reprter 98 envia do Chile. Nos dois primeiros, reposicionados abaixo, fala do pas e fala principalmente da primeira casa do poeta Pablo Neruda – em Santiago. Hoje, resume a segunda casa, em Valparaso, e anota que esteve em Via del Mar, o mais importante balnerio do Pacfico Sul. Sobre esta cidade, recorda apenas que o Brasil ali jogou para ser bi-campeo de futebol, em 1962. E que o lugar, belo e j frio neste comeo de Outono, no tem praias que concorrem com as praias do Brasil. E de novo mergulha no poeta do “Yo no lo quiero, amada/ Para que nada nos amarre/ que no nos una nada”).

Nas fotos, o "porto do fim do mundo"; e a vista de Valparaso, do quarto e da cama do poeta, por suas janelas)


Aqui estamos em Valparaso. O batismo dos descobridores quer significar isto mesmo – “vale do paraso”, uma sucesso de vinhedos que vai da costa at os arredores de Santiago, vazando a cordilheira do mar, que apenas tnue aviso do que vem depois – os altssimos Los Andes, nico ponto da Amrica Latina visto livremente do espao.

Um personagem do Brasil tambm heri deste porto e deste povo. Cochrane, o primeiro almirante da Imperial Marinha do Brasil. O lord ingls que a chamado de Dom Pedro I, e pago por ele, correu com a armada portuguesa que resistiu independncia nas costas da Bahia e do Maranho.

Heri, elevado a baro no Brasil, Cochrane depois veio lutar nas frias e revoltas guas do pacfico e aqui –mais do que no Brasil – tornou-se heri no levante pela independncia. Sua voz ouvida neste porto.

A praa principal de Valparaso tem o nome de Vitria.

Belas e negras fontes guardadas por negros lees de bronze no deixam esquecer que a esquadra que partiu de Valparaso venceu a Guerra do Pacfico, e que o Peru, submetido, deixou vir de Lima fontes e lees, belssimos, que rosnam na praa.

Poetas no costumam se inclinar diante de guerreiros, mas o ingls Alexander Thomas Cochrane, da estirpe do almirante Nelson, tem lugar at na sala mais ilustre do porto de Valparaso, cujas casas penduradas pelos morros lembram ao maior dos oceanos que a soberania das guas aqui acabou.

So habitaes simples e coloridas de um quadro primitivo interminvel, forrando os morros, tendo no meio delas, no ponto mais alto, na melhor vista, no mirante central, tocando as estrelas, entre o mar e dependuradas vidas, a segunda casa de Neruda, chamada de La Sebastiana.

DIAS DE GLRIA

Antes que entremos a conhec-la, preciso dizer que o “porto do fim do mundo”, na nossa frente, teve outros dias de glria.

Viveu-os at por volta de 1910, quando o Canal do Panam tornou intil aquele longo lao de navios at o polo sul, quando era preciso contornar o continente para tocar qualquer outro mar.

Seguiu vitorioso enquanto o salitre chileno foi o sal da terra. Os alemes descobriram um substituto sinttico, melhor e mais barato, e a riqueza do Chile girou e se perdeu nas minas ainda repletas do Atacama.

A outra glria de Valparaso um bandido e chama-se Joaquim Murieta , e a glria talvez deva ser partida com o Mxico.

Querem uns que Murieta partiu de Valparaso para ser o aventureiro e salteador que foi na corrida ao ouro da Califrnia, onde chegou antes dos americanos. Mataram sua mulher e o mito – pretendido pelas duas ptrias – ignorou a morte, e segue.

La Sebastiana, a casa de Neruda que comeamos a ver, de 1959 e chegam a dizer que extravagante. O poeta a completou quando havia deixado definitivamente sua segundo mulher, uma argentina, e j vivia com Matilde.

Aqui, avam temporadas, porque o porto, “que abre as portas ao mar infinito”, diferente da “ prisioneira Santiago, cercada por muros de neve”.

Pegou a construo da casa pelo meio e a concluiu como pensou, anexando-lhe andares nuticos, virados para o mar como esfinge em trs lances e muitas vistas.

Miradouro de oceanos, sustentado por cimento, ferro, vidros e portas baratas, material de demolio, azulejos e toda recordao que juntou por uma vida de viajante.

Janelas e portas so escotilhas e a mesa est posta como se o almoo espere o poeta, trazido por correntes marinhas orientadas pelos mapas na parede.

“Dom Pablo est ici”, anuncia a placa no barzinho, servido de um sino, debaixo de numerosas escadas, retorcidas, enviesadas, vigias de “recuerdos” que o dono foi anexando, at ancorar no bar onde apenas o capito de “los versos del capitn” tem ordens para entrar, permanecer e servir os amigos. S ele.

No ltimo andar, queda a cama do casal, de ferro, dourada, obliquamente estendida e oferecida ao mar, que vem e vasa pelos vidros da ovalada alcova.

O Pacfico e seus barulhos, navios, rumores, cantos e cerrao. Amores, todos so bem vindos a dentro. Se partem os barcos, e se de um deles se acena com um leno, a despedida talvez pea a cerimnia de um veraz olhar pela escotilha.

Sobre a cama, um lbum de fotografias, originais.

Consentem que eu o abra e dele salta o poeta amazonense Thiago de Melo, do “Estatuto do Homem”, numa imprecisa comemorao noite na intimidade de La Sebastiana.

Logo adiante, num canto, bradam os jornais chilenos de 1971 que o dono ganhou o Prmio Nobel de Literatura.

Protegidos das mos, esto os livros amados , a mquina de escrever, a escrivaninha de tantos poemas, a cadeira de senador romano, o olhar do almirante Cochrane, e, sobre todos, em grau de sisudez que escorre da imensa barba branca, o doce poeta norte-americano Walt Whitman, confessadamente a maior irao de Neruda, ao lado de Baudelaire e Rimbaud.

(Quando ordenava a construo da casa, um pedreiro perguntou ao poeta se o homem era o seu pai. Pablo refletiu e concedeu: “Sim, meu pai. Meu pai espiritual”).

Viajante desde a mocidade, Dom Pablo pouco parou em Valparaso, mas de l nunca saiu.

Quando lhe tiraram o mandato de senador e ele teve que fugir saltando os Andes, um tempo ficou escondido na casa de um militante do partido comunista, no porto. E, ali, farejado por uma centena de policiais, concluiu seu livro mais importante – o Canto General.

O TERREMOTO

No “porto do fim do mundo”, como em qualquer parte do Chile, todos tm uma lembrana de algum terremoto. Ou mais de um. Assim descrito, pelo poeta:

“ O rudo rouco que vem da profundeza como se uma cidade submarina e subterrnea arrojasse seus campanrios enterrados a dobrarem para dizerem ao homem que tudo terminou”.

O terremoto e sua mo marinha, o tsunami, descrito por Neruda no “Confesso que Vivi”:

“...quando tudo j parecia definitivamente quieto na morte, saiu do mar como o espanto ltimo a grande onda, a imensa mo verde, que, alta e ameaadora, sobe com uma torre de vingana varrendo a vida que fica a seu alcance”.

La Sebastiana, triunfante em suas janelas sobre o mar, jamais foi alcanada por maremoto, porque, no alto, est alm e acima da onda maligna.

Contudo, suas paredes nos trs andares guardam cicatrizes do grande terremoto de 1965. O poeta aqui chegou trs dias depois, para examinar gretas nas paredes, relgios no cho, vidros estilhaados, objetos raros reduzidos a lixo.

D para ve-lo no meio da cena: Matilde varre a casa , pesarosa, enquanto Neruda a custo acha o papel onde convocar:

“Vamos, poema de amor, levanta-te dentro os vidros partidos que chegou a hora de cantar.

Ajuda-me, poema de amor, a restabelecer a integridade a cantar sobre a dor”.

Em 1973, poucos dias antes de morrer, terremoto igual em violncia se abateu sobre La Sebastiana. Talvez pior. Os militares saquearam a casa, com a mesma fria que dispensaram La Chascona, em Santiago.

Sabe-se que o Chile se protege melhor dos terremotos naturais, do que desses emprenhados pelo dio.

H uma cultura ssmica que ajuda a entender, com resignada e mansa certeza, que o terremoto, o prximo, sempre vir. A Catedral de Santiago, tambm ela, j caiu 3 vezes e o intervalo entre um e outro grande abalo de 15 anos, e j se aram 20.

A energia concentrada abaixo da terra, socada e pisada pelos altssimos Andes, est madura, pronta para submergir, e os chilenos aguardam. Aguardam serenamente.

Ningum deve correr. As crianas caminharo para o ponto de defesa previamente ensaiado. A nova ferrovia de Santiago promete no desmoronar, porque, suspensa, feita sobre molas, montadas por engenheiros japoneses, os melhores do mundo em enganar terremoto.

Se a terra sacudir de dia, ser melhor – pensamos todos.

Se balanar durante a noite, Deus esteja!

Assim, no ser muito dizer que o Chile, toda noite, deita-se com o medo. E que o medo evanesce ao amanhecer, para voltar mais tarde, com a noite.

O poeta Neruda, diz o garon do restaurante Marco Polo, na Plaza de Armas, est por todo o Chile. “Agarraremos em sua poesia. E ele nos consolar com novos versos”.

Em vida, Neruda foi um poeta ao reverso. No tinha existncia torturada, era namorador, sensual, gluto, viajante, procurador de aventuras e apreciador dos gozos, do vinho. No importa que certa medida de desventura o tenha acompanhado do bero.

Sua me morreu de tuberculose, dias depois que nasceu. (“Sem que me lembre, sem saber que a olhei com meus olhos, morreu minha me, dona Rosa Basoalto”).

Casado pela primeira vez com uma holandesa, no Oriente, teve com ela uma nica filha, que nasceu com problemas congnitos e morreu aos 8 anos, da mesma hidrocefalia.

Com Matilde, experimentou duas vezes a esperana de ouvir o doce “papai”, mas as duas se frustraram. E o poeta do Chile, nem assim, desistiu da alegria.
Que teve na chuva seu personagem inesquecvel:

“A grande chuva austral que cai como uma catarata do Plo, desde o cu do Cabo de Hornos at a fronteira. Nesta fronteira, o Far West de minha ptria, nasci para a vida, para a terra, para a poesia e para a chuva”.


(Falta visitar a casa de Isla Negra./
Ao sul de Santiago, a menos de duas horas, o poeta corre e toca o sino toda vez que uma navio cruza o mar./
Depois, deita-se junto ao mar./

De volta a Santiago, o sentido choro de um menino na porta de um tribunal chama o pai, e pode acordar o poeta).



De: Reprter 98 - Quarto e ltimo despacho Data: 2/4/2005 21:15
Cidade: Isla Negra - Santiago do Chile

(Abaixo, as derradeiras “anotaes de viagem” do reprter 98 que foi ao Chile, e j volta, visitar as trs casas do poeta Pablo Neruda. Nos 3 primeiros despachos, viu e comentou os Andes e as casas La Chascona e La Sebastiana. Neste ltimo, vai a Isla Negra, que mais do que qualquer outra casa retm a poesia de Dom Pablo. Alm de guardar o prprio poeta, infinitamente disposto diante do Oceano Pacfico).
As fotos mostram: 1 - as sepulturas de Pablo e Matilde, na areia branca; 2 - o quarto do casal com janelas para o Pacfico; 2 - a barcarola branca e os sinos que o poeta tocava toda vez que uma embarcao cruzava o horizonte; 4 - o mar que Neruda via de sua cama.

Estas so as ltimas anotaes enviadas do Chile sobre as trs casas do poeta Pablo Neruda.

O menino nascido em 1904, com o nome de Neftali Ricardo Reyes Basoalto. Nascido em Parral, ao sul, e criado em Teumuco pelo pai ferrovirio (de trem lastreiro) que depois da morte da me se casou novamente e lhe deu irmo e irm.

At aos 69 anos, quando morre, Neruda repetir que a chuva o personagem inesquecvel de sua vida –, a fria e duradoura chuva austral, que dura 13 meses no ano de apenas 12.

A poesia o acometeu cedo, quando aprendeu a escrever, e sentiu “uma vez uma intensa emoo e tracei algumas palavras semi-rimadas, mas estranhas a mim, diferentes da linguagem diria”.

O resto sabido.

Neftali levou a primeira “visita da inspirao” ao exame do pai, que lhe perguntou: “de onde o copiaste ? ”.

A fria recepo comeou por matar Neftali e a fazer nascer Pablo Neruda, o nome tcheco que buscou aleatoriamente para permitir que a poesia jorrasse sem a censura paterna.

Os dias e noites da Teumuco incrustada em regio indgena, servida de belos rios e de um oceano que s acaba no Oriente, so os definitivos de sua poesia e de sua vida.

O mais que fez depois, viajando quase sempre, foi revisitar o menino de Teumuco, que certa vez conheceu “uma senhora alta, com vestidos muito compridos e sapatos de saltos baixos”.

A nova diretora do liceu de meninas - Gabriela Mistral, que, como ele, seria Prmio Nobel de Literatura, pergaminho que pode ser visto no claustro da Igreja de S. Francisco, no centro de Santiago, a mais antiga igreja do Chile e a que jamais tombou diante dos terremotos.

“EU ME VOU’

Por um trem noturno, que consumiu a noite e depois o dia, o poeta chegou a Santiago aos 17 anos, para aprender francs. Seus melhores poemas viajaram juntos na mala adolescente, prontos.

Na rua Maruri, hoje pouco localizvel na Santiago de 6 milhes de habitantes, nas margens do rio Mapocho, Neruda anexa poemas de entardecer numa penso de estudantes e publica o primeiro livro - “Crepusculrio”.

Nele, acima de todos, salta Farewel, retirado da boca de um quase ou ps-menino:

“Fui teu e foste minha. Sers do que te ame, do que colha no teu horto o que eu plantei/ Eu me vou, estou triste; mas sempre estou triste/venho desde os teus braos. No sei aonde vou/ ... Desde teu corao diz adeus um menino. E eu lhe digo adeus”.

Um ano depois, mal entrado nos 20, repete a dose com os 20 Poemas de Amor e uma Cano Desesperada, de onde retira-se para a carreira solo o poema 20, conhecido e recitado por toda parte : “ Puedo escribir los vessos mais tristes esta noche...”

Sado da mais abandonada adolescncia, firma-se o poeta, que em seguida vai correr o Oriente e as “residncias na Terra”, como adido diplomtico do Chile, em aventuras que saltaro de porto em porto, at regressar e partir muitas vezes do Chile.

Senador aos quarenta e poucos anos, ser despojado do mandato e obrigado a fugir a cavalo pelos Andes, “com quem no se brinca”. Ou forado a ir para a cadeia.

Um ano antes de morrer, receber a ovao final do Chile, reunido em novembro de 1972 no Estdio Nacional; o mesmo estdio que 10 meses depois se encher de presos polticos, entre eles seus amigos.

O poeta j era, desde 21 de outubro de 1971, Prmio Nobel de Literatura. Viria a ser embaixador na Frana. Tinha, porm, encontro marcado com o ltimo revs, no primeiro 11 de setembro das Amricas, em 1973, por ocasio do golpe contra Salvador Allende.

Morreria de cncer, 12 dias depois, e toda a glria reverenciada no mundo no livraria 2 de suas 3 casas de serem saqueadas pelo Exrcito.

ISLA NEGRA

O mar, a fome, o vento, o frio, a aventura, a neve, o rio, o bosque e o amor, sempre o amor, esto no ncleo da poesia de dom Pablo, mas num degrau menor que a chuva de Teumuco, que nunca acaba.

Assim recordando, entremos nesta casa de Isla Negra, que nos abre a ltima porta ao poeta. Ele est aqui. Seu corpo estendido diante da praia nimba o Chile.

“Mergulhado nessas lembranas, desperto subitamente com o rudo do mar. Escrevo na Isla Negra, na costa, perto de Vakparaso. Acalmaram-se h pouco os grandes vendavais que aoitaram o litoral. O oceano – que, mais do que eu o olho na minha janela, me olha a mim com seus mil olhos de espuma – conserva ainda no marulhar a persistncia terrvel da tempestade”.

As aspas do “Confesso que Vivi” sinalizam a importncia da casa de Isla Negra na obra de Neruda.

O poeta vivia j com a segunda mulher, a argentina Delia del Carril, 20 anos mais velha, depois de separar-se da primeira, que lhe deu a filha morta de hidrocefalia aos 8 anos.

Em 1939, depois da guerra civil da Espanha, o casal comprou a casa em praia desabitada, sem gua potvel e sem eletricidade, mas que lhe lembrava o mar e portos da infncia.

A habitao precria se resumia a um corredor, um banheiro, cozinhas e dois dormitrios. “E, pelo mesmo preo, um mar enorme que no cabe nos seus olhos.”

Aos poucos, custa de livros, imprime a marca pessoal, estreando neste resumido terreno costeiro o ritual das casas partidas em 3 ncleos, como far nas outras – ordenando “cabea, corao e estmago".

Estava decidido a escrever aqui o seu Canto General. “A costa selvagem da Isla Negra, com o tumultuoso movimento ocenico, permitia que eu me entregasse com paixo empresa de meu novo canto”.

DIAS ESTIVAIS

Era j o homem feliz, como consentiu que o descrevessem, e como de fato foi, sem se deixar torturar pelos prprios tristes versos.

Neruda troca os dias estivais de Isla Negra pelos de inverno, de longe a estao preferida de seus versos, “quando uma estranha florao se veste com as chuvas e o frio, de verde e amarelo, de azul e purpreo”.

quando aoita o vento sul a praia, com fria, expelindo sal, espuma e as ondas que viajam do plo chileno. Assim, surge esta Isla Negra, sem ser ilha e sem ser negra, mas com formidveis estrondos de mar, substituta criada do Puerto Saavedra dos olhos infantis.

A ptria dos primeiros dias, a viso que impregnou os versos inaugurais, muito se desfez, de fato, pelo terremoto de 1960. ‘Sempre suspenso como uma espada de fogo”, o cataclismo “aniquilou” com suas lembranas e levou at a casa de nascena, em Parral, desfeita:

“Entrou o mar que levou rolando as casas e as embarcaes. Os molhes ficaram retorcidos e desbaratados. Uma onda gigante aoitou as papoulas. Tudo foi destrudo neste ano de 1960. Tudo. Que minha poesia conserve em sua taa a antiga primavera assassinada”.

O navegante esttico finca-se aqui em terra firme; o marujo imvel instala-se para adorar as ondas por elas mesmas.

Teme maremotos e marulhadas, mas os busca, e ali os espera, especialmente quando “os invernos transcorrem com um espao povoado at o infinito pelo frreo mar e pelas nuvens que o cobrem’.

Depois, reafirmaria: “ - O mar me pareceu mais limpo do que a terra. Nele, no vemos os crimes diablicos das grandes cidade, nem a preparao do genocdio. beira-mar no chega o smog purulento, nem se acumula a cinza dos cigarros defuntos. O mundo se oxigena junto higiene azul das ondas”.

(Mas, queixa-se: “a nica coisa que entra no inverno, no outono e tambm na primavera so as gabelas, os fiscais, os avisos tributrios, as cutiladas do imposto”).

NA PONTA DO TROVO

Recomponho, e vejo. Num desses violentos ribombos do Pacfico contra o jardim de Isla Negra, certa vez temeram os amigos que a casa do poeta e ele mesmo tivessem sido engolfados pelo mar. Foi quando daqui saiu, dias depois, o mensageiro verso tranquilizador:

“Na ponta do trovo andei/ recolhendo o sal no rosto/ e do oceano, na boca, o corao de vendaval/ eu vi o estrondor at o znite,/morder o cu e cuspi-lo”.


Conhecer Isla Negra viajar hora e meia ao sul pelos campos pastoris de Santiago, por tima estrada. Um importante porto de exportao de cobre a antecede e no h como no ver dosada pobreza pelos caminhos da costa.

A casa da poeta, que a imaginao antes disps em alto penhasco, com o mar em obediente servido, fica esquerda, depois da estrada de asfalto, sem sinais de glria, no nvel da praia.

s deixar o carro no acostamento e percorrer uma quadra em direo a pouca areia e muito pedra que estancam o Pacfico Sul. Como as casas vizinhas, a de Neruda tem o doce contorno de uma cerca de madeira e seria como as outras no fosse a procisso de visitantes.

O primeiro ncleo da casa de madeira, simples, em dois andares. Aqui, esto as esttuas de proa de Neruda, o equivalente transatlntico de nossas carrancas fluviais; no segundo, a biblioteca e a alcova de Pablo e Matilde, que a simplicidade das 4 janelas de vidro, com altura de um homem, abre os aposentos ao mar. Completamente.

A 200 metros da arrebentao, separado por pedras escuras, a cama de Pablo e Matilde flutua novamente sobre o oceano e tem dele a viso completa, integral, visto at os seus confins, com bordados brancos e rendas de altar espumantes.

H fartura de mar para os sonhos do capito. Se uma embarcao surge no horizonte, navegando para Valparaso e para o porto do fim do mundo, eis que o poeta deixa tudo e corre.

Corre para tocar os sinos que instalou quase defronte, nos mastros em forma de estrela que colecionam 6 deles, perto da ncora enterrada na areia e de uma barcarola branca.

Abaixo do quarto, fica o bar da casa e, nele, escritos pela mo do poeta os nomes dos amigos que se foram. No lance seguinte, em direo ao sul, a parte correspondente ao estmago, sempre em formas martimas, como um convs.

Por toda parte, mascarones, barcos veleiros aprisionados em garrafas, colees de caracis, de alades, lunetas, retratos de pssaros, recuerdos, fotos dos amigos, livros dos amigos, presentes dos amigos, poesia dos amigos.

Por fim, a ltima escrivaninha, j chegando porta do quintal e do mar, construda com outro prancho que o mar devolveu.

A meio caminho da cerca que separa o quintal do oceano, no quadrado sem nfase, entre pequenos tufos verdes e botes cor de rosa, esto na areia branca os corpos de Neruda e Matilde.

Seus nomes resumidos – Pablo Neruda e Matilde Urrutia - escritos no mrmore com 4 datas, de nascimento e morte, anunciam ao mar que o casal mais feliz da recente poesia mundial ali permanece, lado a lado.

O poeta Walt Whitman, pai espiritual e uma das iraes de Neruda, certa vez escreveu:

“Se queres ver-me novamente, procura-me sob teus ps.
Dificilmente sabers quem sou ou o que significo;
No obstante serei para ti boa sade
E filtrarei e comporei teu sangue.
E se no conseguires encontrar-me, no desanimes;
O que no est numa parte esta noutra
Em algum lugar estarei a tua espera.”

(Antes de transferir este relato pela Internet, j de volta a Santiago do Chile, uma cena: o reprter 98 e seu amigo Landulpho Silveira, de Poos de Caldas, diretor da TV Libertas de Pouso Alegre, am diante do Tribunal Criminal.

um prdio solene, prximo de outros, diante do Senado Chileno, ao lado do belssimo palcio da Chancelaria, logo adiante das runas do antigo prdio do jornal El Mercrio, arrasado pelo terremoto de 85.

Os carabinri do Chile manobram um furgo verde, entrando de r pela garagem. Os guardas empunham metralhadoras.

Um grito de menino, de 10 ou 12 anos, paralisa a manh.

Supe-se que seja filho de um prisioneiro que est sendo desembarcado pelos fundos. Como as mulheres e alguns homens, como as outras crianas do grupo, o menino se joga no cho e cola o rosto no asfalto, desesperado.

Quer ver alguma coisa, grita um nome, e o repete, aflito:
- Hijo!, Hijo!, Hijo”...

Supe-se que veja ao menos uma cala, ou uma perna, e do outro lado, responde a voz de homem, rpida. O segundo grito do menino, agora contido pela me, ainda mais lancinante, doloroso.

Sugere a voz da rua que o pai talvez seja ladro, homicida, o que for.

O novo grito que percorre e fere o azul da manh vasto, escala os Andes, e quem sabe pode chegar ao poeta em Isla Negra.

Como explicar a um filho de 10 anos, que estremecidamente ama o pai, que o pai ladro e que assim condenado o amor entre eles deve cessar, ser amputado, destroado e arrancado, se revogado j no pode ser ? )






Para ler "A Fruta Amarela"


Flvio Pinto o entrevistado desta edio. Conhecido por seu ecletismo, Flvio faz, ou j fez de tudo um pouco: foi jornalista, escritor; jogou futebol, joga tnis; foi nadador, caricaturista; foi bancrio, tocador de violo; foi coroinha, cozinheiro (dos bons) e vai por a afora. Para falar de si e da sua "A Fruta Amarela" - livro com o qual estreou no mundo literrio - ele nos recebeu no Bar do Baiano, na Pompia , onde se come a melhor carne-de-sol de Belo Horizonte. Manda a lei que um petisco desses seja regado com boa pinga de Salinas, como convm ao povo de Montes Claros, terra do entrevistado

Para dar um troco em Dan Burstein, autor de "Os Segredos do Cdigo" escrito para os leitores de Dan Brown melhor entenderem "O Cdigo Da Vinci", fizemos esta matria destinada aos interessados em "A Fruta Amarela", de Flvio Pinto. Gozao parte, o que queremos homenagear o colega e, claro, falar um pouco de sua obra.

AFA - O qu voc fazia antes de entrar para o BB?

FP - Meu primeiro trabalho, aos 14 anos, foi como escrevente quase juramentado no Cartrio do meu tio Joanir Maurcio, um homem inteligente e criativo, que era filsofo, pintor, poeta, inventor e engenheiro autodidata. Joanir serviu de inspirao para mim, por sua simplicidade e maneira de levar a vida. Quase toda tarde, fechado o cartrio, ele nos levava - eu, e meu irmo, Nilo - para a Lagoa da Barra ou beira do Rio Verde, num velho caminho Ford 48, em cujo pra-choque se lia: "Fazenda do Pequi : enquanto descansa, carrega pedra", frase que bem caracterizava a famlia Maurcio. E literalmente era o que se fazia: enquanto ele - com sua certeira pontaria - derrubava patos e marrecos, um agregado enchia o caminho de areia, lentamente, para dar mais tempo da gente aproveitar o lazer. Com 16 anos, entrei para "O Jornal de Montes Claros", como reprter, e tive a felicidade de trabalhar com jornalistas do naipe de Oswaldo Antunes, Waldyr Senna Baptista e do saudoso Caio Lafet, que tiveram bastante pacincia para corrigir meus terrveis textos de iniciante, me mostrando o jeito certo do ofcio, at nas piores horas, quando eu tinha vontade de largar tudo e tentar alguma coisa mais fcil. Foi um grande prazer de ter vivenciado aquela incrvel redao, onde se fazia o mais moderno jornalismo do interior do pas. Tudo d saudade. As gozaes ao levarmos um furo do concorrente, os atentados "ltima flor do Lcio", o cheiro de chumbo derretido da linotipo, a urgncia quase mortal de escrever um texto de ltima hora e, mais do que tudo, a convivncia diria com inesquecveis colegas: os saudosos Lazinho Pimenta, sempre de bem com a vida e dando fora aos mais novos, e o poeta Humberto Santos, com suas doces e suaves crnicas apaixonadas; tambm com Haroldo Lvio, Stanislau Guimares, Waldemar Brando, Carlos Lindemberg e, mais tarde, Paulo Narciso e Alberto Senna, iniciando belas carreiras no jornalismo mineiro. Depois, na "A Gazeta do Norte", o mais antigo e tradicional da cidade, tive a honra de trabalhar com o lendrio Jair de Oliveira que, por dcadas, carregou sozinho aquele velho jornal, em meio a revolues e quarteladas sem fim. Na Gazeta, cheguei a ser at colunista social, substituindo o titular que casou e mudou para a Bahia. Tive a glria de participar da equipe que escolheu Darcy Ribeiro a personalidade do ano, da cidade. Isto em 64, no incio da ditadura. Aps aquela famosa edio, a gente dormia com um olho fechado e o outro aberto, pronto para pular a janela, caso a "justa" chegasse. Quando a Gazeta fechou as portas eu j tinha ingressado na carreira bancria, primeiro no Banco do Nordeste e depois no BB, onde parei minha mula. Mas a velha chama continuava e voltei ao JMC, escrevendo amenas crnicas semanais, sobre coisas & loisas, como dizia Haroldo Lvio. Assuntos noturno-etlicos acontecidos em estranhos lugares, tanto misteriosos como nefastos, desprezados e no freqentados amide pela fina flor da sociedade montes-clarense. A coluna chamava-se "A Coisa Assim" e, alm de lugares mal falados, tambm apresentava cgados filsofos e falantes urubus, em meio a uma pliade de ilustres amigos que se tornaram assduos personagens, alguns j encantados e outros ainda por aqui, mas todos efetivos e afetivos nas profundezas do meu corao.

AFA - Conte algo engraado, ou trgico, acontecido naquela redao.

FP - Tragdia, graas a Deus, s aquela da dosagem exata - nem mais nem menos - do dia a dia do noticirio ou da prpria vida real relatada, que se dilua automaticamente nos dias seguintes. No que fssemos insensveis ao sofrimento alheio. A gente sofria sim (muito mais com a misria e a

ignorncia das pessoas, diga-se), mas se num dia chegava uma notcia ruim, no outro vinha uma pior. Ento, acabvamos nos acostumando e...bola pra frente.

Quanto s histrias engraadas, dentre muitas, particularmente me lembro, com alegria, de uma que teve a participao do grande e saudoso poeta Cndido Canela. Toda semana ele escrevia uma poesia ou uma crnica e, com o original no bolso, aparecia na redao e a entregava para publicao. E por ali ficava, comentando, papeando e contando causos, com aquela verve e espontaneidade que s quem o conheceu sabe. Certa manh, ele entrou. Eu estava s, na redao. O Secretrio Waldyr Senna e o Dr. Oswaldo Antunes, em

suas salas. Saudei-o efusivamente, como sempre, mas no fui correspondido. Vi logo que tinha alguma coisa errada no ar. No precisei nem perguntar, ele foi logo falando: "Mas, logo voc, que eu mais gosto aqui no jornal, neto de D.Finita Guerra, minha amiga e vizinha, me deixar sair um erro desses, faltar uma letra no ttulo da minha poesia?" Eu , meio que sem entender nada, fiquei calado e a o telefone tocou, era uma emergncia, pedi desculpas e tratei de cair fora. Ainda na rua, subindo a Dr. Santos, olhei pra trs, preocupado, e vi que o poeta tambm tinha sado. Pensei...E agora? S quando voltei fiquei sabendo o que acontecera. Na rotina diria do jornal, as provas das matrias sadas da linotipo, de colaboradores e reprteres, permaneciam na oficina depois de corrigidas por quem estivesse na redao, assinadas e colocadas num prego na parede, com os originais. E Candido tinha ado l antes e visto minha rubrica na prova de uma poesia sua, que sara na edio daquela manh.

A, o Waldyr me contou o eplogo.

Logo que o poeta saiu, Dr.Oswaldo, que a tudo ouvira da sua sala, foi at a sala do Secretrio, preocupado: "Nossa, voc no acha que Candido exagerou? Ficar com essa raiva toda pela falta de uma simples letra ?" Foi quando Waldyr explicou : " , doutor, mas o caso que foi no ttulo da poesia "Sob o cu de Montes Claros". Ficou faltando a letra "e" de Cu !... E at o acento ficou..." (risos)

O prprio Cndido, nos meses seguintes, cansou-se de rir e repetir este caso (sempre brincando e fingindo uma cara fechada para mim), em que ns dois, eu, reprter iniciante, e ele, poeta e cronista reconhecido nacionalmente, fomos os personagens...

AFA - Como, ou quando, surgiu a idia de escrever um livro?

FP - Todo foca, reprter ou cronista que se preza alimenta este sonho. Talvez pela gostosa sensao experimentada, quando, pela primeira vez, viu suas idias no jornal, travestidas naquela fria seriedade das letras negras impressas no papel branco. E, se quisesse repeti-las - em maior amplitude - e com a possibilidade de eterniz-las, o jeito, ento, era sonhar alto e tentar cometer um livro. Havia, tambm, a influncia de dolos e cones da imprensa e da literatura, nacionais e estrangeiros. A gente era humilde e regional, mas tambm queria fazer parte do time. Lembro-me que, naquela poca, cheguei a comear trs romances. Em todos, o mesmo assunto: amores e desamores em meio a doses dramticas de crimes, mistrios e, de vez em quando, um pouco de horror, se a ressaca estivesse forte demais. Mas, eu s comeava, nunca acabava e os mistrios e desamores logo morriam, sem sequer nascer. Quando o tempo da vida real foi ando e as coisas, boas e ruins, acontecendo, as velhas histrias e a vontade de cont-las viraram prioridade. Ainda que fosse necessrio dar melindrosos saltos por cima da tnue linha que separa a mentira bem contada (fico) da verdade mal resolvida (realidade), aquele velho sonho, quem sabe, poderia finalmente acontecer. A partir da, ento, A Fruta veio devagar, tomando gosto e forma, visvel, como um filme, minha frente. Eu s tinha que coloc-la no papel. Quando dei pela coisa, duzentas e poucas pginas haviam se ado. Aps muito sangue e algum suor. S faltavam as lgrimas. Ento, eu falei pros meus botes: "At que enfim, Flavo". E chorei... De alegria, e porque sou choro mesmo! (risos)

AFA - O escritor Haroldo Lvio, que foi nosso colega, em seu livro "Nelson Vianna O Personagem", dedicou-lhe a crnica "O dia que Flvio Pinto voltou para Montes Claros", referindo-se ao seu retorno cidade, aps morar no Rio. Voc, por outro lado, o transformou num importante personagem de A Fruta Amarela, o Dom Harold Livingstone. Trata-se de uma troca de gentilezas?

FP - Grande Haroldo! A minha dvida literria com ele nunca se pagaria com apenas um personagem. Alm do qu, como Dom Harold Livingstone - no qual apenas retratei aquele seu fleumtico e solene jeito de ser, que esconde um emrito gozador e apreciador da alma humana - a dvida s fez aumentar. A propsito, uma maravilhosa crnica sobre o livro - escrita com sensibilidade pela escritora Carmem Neto Victria - realou ainda mais a grande performance do seu personagem, provando isto. E devedores lhe somos, todos os participantes daquela velha redao, num tempo sem internet ou google da vida, para nos tirar dvidas sobre datas histricas, poltica, prosa, poesias completas e seus autores, to necessrias a um texto bom e completo, que se tornasse merecedor de um elogio, raro, do Dr.Oswaldo ou do Secretrio do jornal. Haroldo, com aquele enorme sorriso, sempre nos dava todas as respostas certas, na hora, de qual poca ou antiguidade fossem, e bem mais rpido que qualquer computador. Algum, de sua intimidade, me disse certa vez, que ele ou vinte e tantos anos de sua vida enfurnado na Biblioteca Municipal, apenas lendo, e to somente lendo, tudo que l existia, desde livros at revistas dos anos 20 e 30. Mal saa para dormir ou comer. Eu e os outros sempre acreditamos piamente nesta histria e at hoje lhe agradecemos ter compartilhado tanta sabedoria com a gente. Ainda me emociono, e no canso de ver igual grandeza, na gentileza de seu texto para a "orelha" do livro. Um grande abrao, Haroldo, velho amigo!

AFA - Parece que muitos personagens de A Fruta Amarela so inspirados em conhecidos e amigos seus. Fale sobre isto.

FP - Este assunto, quando do lanamento em Moc (foram dois, o outro em BH), andou provocando discusses entre amigos mais chegados, que acreditavam num maior sucesso e entendimento do livro, se fossem identificados os nomes verdadeiros, os apelidos, etc. Com o tempo, eles viram que a inteno foi a de no ser regionalista demais. Lgico que a cidade, suas ruas, gente e lugares so reais e se constituem num dos pontos mais fortes, tanto como cenrio, ou quanto a seus personagens histricos. Isto possibilitou a quem nunca morou em M.Claros, nem conhecido tais pessoas, pudesse tambm apreciar e entender tudo, em igualdade de condies. E foi o que aconteceu. Guardo com carinho vrios depoimentos, cartas, mensagens e crnicas publicadas em jornais, recebidas do Brasil inteiro e at do exterior, onde os leitores se identificam naturalmente com uma cidade que nunca conheceu. Pode-se fazer at um pequeno teste: se o leitor resolver mudar os personagens fictcios (a maioria, com apelidos) e troc-los de lugar nas situaes vividas, no se perder nada na narrativa. A mesma coisa se aplica ao Colgio, que todos acham que o So Jos, marista, onde aprendi quase tudo do pouco que sei. Como estudei l, quem conhece a minha histria associa o Colgio do livro a ele. Com certa razo, diga-se. Mas, como na questo dos apelidos, aquele colgio sem nome o resultado de grande miscelnea: existem vrios num s, uma mistura de todas as histrias que ouvi sobre internatos, tanto masculino como feminino, para que todos - que tivessem ado por semelhante experincia - tambm pudessem dar asas s boas (ou ms) lembranas de sua prpria poca, to importante para todos. E parece que deu certo, j que muitos leitores relataram, com alegria, coincidncias vividas em internatos de padres e de freiras. At um do Rio Grande do Sul apareceu.

AFA- E a escritora Ndia Batella Gotlib, como entrou nessa histria ?

FP - Como um especial anjo da guarda. Eu j a conhecia ( e a irava) desde quando morou aqui. Ao terminar o livro, me enchi de coragem e mandei uma cpia para So Paulo, pedindo sua opinio. Cortei um riscado nesse tempo que o livro esteve l. At que um dia recebi sua crtica, que gostaria de reproduzir aqui, sem falsa modstia:

"Li seu livro e gostei muito dele. Linguagem clara, direta, com assunto interessante, sabendo manter a curiosidade e expectativa do leitor, variando bem o tipo de caso e conseguindo, com isso, manter um ritmo bem dosado. E tudo regado a bom humor, num relato agradvel de se ler e divertido. Trata-se de um inteligente e sensvel da vida no interior, que escapa das redues simplistas to comuns neste tipo de narrativa. Pois seu livro no interessa s aos conterrneos. So cenas especiais, mas que tm sempre alguma coisa a dizer a qualquer um de ns. Se segue o tipo de narrativa de 'memrias' (creio eu...), datadas e localizadas, alis, de longa tradio na sua terrinha, tais memrias so de tal como construdas que tocam qualquer um, ora por um ou outro detalhe inusitado, ora pelo empenho afetivo e emocional que voc cola ao texto, recursos que voc usa bem, sem sentimentalismo piegas nem exacerbao Regionalista".

Ora, depois de receber essa fora da titular de Literatura Brasileira e de Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa da USP, autora, entre outros ttulos, de O Estrangeiro Definitivo, Teoria do Conto, Clarice: Uma Vida Que Se Conta, Tarsila do Amaral, A Modernista, e de Prezado Senhor, Prezada Senhora: Estudos Sobre Cartas, fiquei muito valente. A, como se diz naquele querido norte, resolvi soltar A Fruta Amarela neste mundo afora. Convidei-a, ento, para escrever o prefcio que, sinceramente, sempre achei que ficou melhor que o livro. ou no uma histria de anjo da guarda?

AFA - Para finalizar, quando teremos um novo livro ?

FP - Estou pelo meio de um, acho, se que uma afirmao dessa possa ter alguma validade: como pode existir metade de uma coisa que ainda no se conhece o tamanho?

Parece irreal, mas talvez d para sentir a beleza de fria em que me meti. Fui inventar de voltar no tempo e contar uns casos antigos - acontecidos h mais ou menos cento e cinqenta anos atrs - misturados com o tempo atual, pulando de Montes Claros para Diamantina e vice-versa, e o trem disgramou. (risos)

Foi aumentando de tamanho e tomando tais e diferentes rumos que, de repente, me vi debruado, dia e noite, em cima de livros e mais livros sobre escravos, extrao de diamante, interiores de navios negreiros, tentando ser - o mais possvel - fiel maravilhosa histria desta nossa eterna Minas Gerais e no me enveredar completamente pelos falsos caminhos da pura e deslavada mentira.

Mas, fora isso ( personagens histricos, datas e lugares), o resto tudo fico, com muito amor, desamor, crimes, mistrios e um pouquinho de horror, porque continuo o mesmo,graas a Deus : mais pra aratchara do que propriamente dito. Bom, acho que agora fui fundo demais...S os velhos de guerra vo entender. (risos) E a eles o meu mais forte abrao.